domingo, 8 de fevereiro de 2009

Remédio é justiça

Sem política pública definida para o acesso da população a medicamentos excepcionais, Governo e sociedade acabam pagando a conta dos abusos

  • Por Inês Martins

De um lado o paciente, que precisa de um remédio que o Sistema Único de Saúde (SUS) não oferece. De outro o Governo, oscilando entre a recusa em bancar os medicamentos de última geração e a obrigação de cumprir ordens judiciais. E no meio a Justiça, acionada pelo cidadão quando depende de um medicamento que pode significar, no mínimo, novas esperanças para seu tratamento e sua vida. Numa queda de braço em que não há vencedores, perdem todos ? o cidadão, os governos e a própria Justiça, acusada pelo Ministro da Saúde (repercutido pela imprensa) de fazer o papel do médico. E sobra chumbo para ONGs da área de saúde, acusadas por autoridades ligadas ao Ministério da Saúde e pela imprensa de ajudar os laboratórios a venderem medicamentos. O cenário atual permite que os governos posem de justiceiros ao desqualificar as demandas dos pacientes e que gatunos se beneficiem da falta de sistematização ao promoverem ações articuladas exclusivamente para beneficiar grupos de criminosos. Foi o caso do dermatologista Paulo César Ramos em Marília, São Paulo, que supostamente liderava uma quadrilha acusada de utilizar atestados falsos para conseguir liminares que obrigam o Estado a fornecer medicamentos de alto custo a pacientes e falsos pacientes para combater psoríase. Todos tinham ligação com a ONG Associação dos Portadores de Vitiligo e Psoríase do Estado de São Paulo. O prejuízo estimado é de R$ 63 milhões, uma fortuna se comparado aos R$ 400 milhões gastos pelo Estado de São Paulo com medicamentos excepcionais. O promotor Reynaldo Mapelli Junior, que coordena a área de Saúde Pública do Centro de Apoio Operacional Civil e de Tutela Coletiva do Ministério Público paulista afirma que a "judicialização" (termo utilizado correntemente para designar as ações na Justiça para a obtenção de medicamentos), embora mais freqüente nos últimos cinco anos, é normal num estado democrático de direito. E que as denúncias não têm nada a ver com o direito do paciente constitucionalmente garantido. "Não podemos confundir o direito do paciente em ser atendido integralmente com esses eventuais abusos", diz ele. Os gastos do Governo Federal com fornecimento de medicamentos via judicial aumentou em 1.820% (quase 20 vezes) entre 2005 e 2008. No primeiro semestre deste ano estima-se que foram gastos R$ 48 milhões com esse tipo de despesa (em 2005 foram R$ 2,5 milhões). No estado de São Paulo foram gastos R$ 400 milhões em 2007 ? e desde 2002, 25 mil ações foram ajuizadas. Em 2003, na Bahia, seis ações foram ganhas contra o estado para fornecimento de remédios. E em 2007 esse número subiu para 112. Enquanto isso a lista de medicamentos continua lá, desatualizada, sem critérios objetivos de atualização ? o que gera enorme custo ao gestor SUS, obrigado a comprar o medicamento indicado nas liminares a custos não-negociados com os laboratórios. De acordo com Mapelli Junior, o grande problema é a dificuldade de incluir os medicamentos mais avançados na lista do SUS ou de fazer com que os protocolos clínicos acompanhem a evolução da tecnologia voltada para a sobrevida dos pacientes de doenças crônicas. Políticas de saúdeO tema foi amplamente debatido durante o 4° Encontro Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde, há cerca de dois meses, em Fortaleza (CE), e apesar de existir um consenso de que é preciso ter cautela na hora de adicionar os medicamentos na lista ? "já que os interesses econômicos são muitos" ?, a questão é delicada e deve incluir também a definição de políticas de saúde pública. Para a advogada especializada em direito sanitário e professora da USP, Suely Gandolfi Dallari, não existe problema ético em introduzir os medicamentos através das decisões judiciais. Por outro lado, Suely afirma que é incômodo o fato de o direito no século XXI ainda ser visto apenas como o direito que decorre da lei, quando deveria ir muito mais longe, acompanhando as resoluções e portarias das políticas públicas e a participação popular prevista na Constituição. A estrutura do SUS, de acordo com a advogada, deixa evidente a falta de empenho de todos os envolvidos no processo. Ela se diz decepcionada "com o Governo, que não consegue se planejar administrativamente para realizar uma gestão competente, com os atores do cenário jurídico que não aprenderam ainda a trabalhar nesse novo panorama e com as ONGs que se dedicam a contratar advogados para os casos individuais em vez de lutar por uma defesa coletiva e fazer valer as políticas públicas". Conflito de interesses "O debate sobre a judicialização deve envolver o Ministério da Saúde, as secretarias afins e toda a sociedade civil", afirma José Marcos de Oliveira, do Conselho Nacional de Saúde. Órgão representante da sociedade civil junto ao Ministério da Saúde, o CSN possui 21 comissões e sua missão é avaliar a política da saúde, propor novas ações e fiscalizar a administração do dinheiro público. Oliveira admite que o Conselho ainda não conseguiu uma pauta única para promover essa discussão e diz que o cenário, além de não estar claro, ainda é prejudicado quando estouram escândalos. "Não se deve generalizar essa discussão em torno das ONGs", afirma Mário Scheffer, um dos fundadores da ONG Pela Vida, criada para combater a AIDS, há 20 anos. Ele lembra que as ações judiciais serviram para acelerar a incorporação dos medicamentos essenciais na luta contra a doença e que o movimento hoje reúne mais de 400 ONGs no país. MEU COMENTÁRIO:Uma ONG informar ao paciente que existem medicamentos que podem possibilitar a cura e salvar sua vida não pode ser acusada de conflito de interesses por gestores da saúde pública. A ONG simplesmente ensina ao paciente os caminhos da cidadania, seus direitos como cidadão. Deveria o gestor público evitar que as pessoas sejam prejudicadas, em alguns casos até condenadas a morte ao não se oferecer o medicamento mais adequado para tratar a doença. Não se faz saúde pública tentando desmerecer o trabalho voluntário das ONGs, as chamando de vendedoras de medicamentos.

Carlos VaraldoGrupo Otimismo