quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A HEPATITE C COMO DOENÇA SISTÊMICA


Escrito por Marilia Gaboardi
Seg, 12 de Dezembro de 2011 19:21

A prevalência global estimada da infecção pelo vírus da hepatite C (HCV) é de 2,2% , o que corresponderia a 130 milhões de pessoas infectadas em todo o mundo. Embora poucos estudos tenham avaliado a prevalência da infecção pelo HCV no Brasil, um inquérito realizado pela Sociedade Brasileira de Hepatologia revelou que dos 1.173.406 pré-doadores de sangue avaliados, 14.527 (1,23%)

foram reativos para o anti-HCV.

O HCV é ao mesmo tempo um vírus hepatotrópico e linfotrópico, e pode estar associado a doenças hepáticas e extra-hepáticas. A tabela 1 exibe uma classificação proposta para as manifestações extra-hepáticas do HCV onde estas são dividas em quatro categorias. As duas primeiras categorias (A e B) incluem as principais condições associadas ao HCV, para as quais existem evidências suficientes para justificar a investigação do HCV. As categorias C e D reúnem doenças cuja associação com o HCV ainda precisa ser mais bem caracterizada. Nestes casos, a investigação da infecção pelo HCV pode ser recomendada, especialmente nos pacientes que apresentarem outros fatores de risco (transfusão de hemocomponentes, uso de drogas intravenosas, etc), alteração de alanina aminotransferase ou outros indícios de doença hepática.

Devido à possibilidade destas manifestações extra-hepáticas ou inespecíficas, mas também à sua elevada prevalência, o diagnóstico da hepatite C deve ser considerado em uma série de situações fora do contexto do especialista em hepatologia. Este texto tem o objetivo de servir como fonte de informações aos não especialistas de uma forma geral e também aos especialistas de áreas, como nefrologia, reumatologia, angiologia, dermatologia entre outras.



Tabela 1. Classificação das manifestações extra-hepáticas do vírus da hepatite C



Associação definida por alta prevalência e patogênese
Crioglobulinemia mista



B. Associação definida por prevalência maior que em controles

Linfoma não Hodgkin de células B

Gamopatia monoclonal

Porfiria cutânea tarda

Líquen plano



Associação que ainda requer confirmação/melhor caracterização
Tiroidite auto-imune

Câncer de tireóide

Síndrome Sicca

Fibrose pulmonar

Diabetes mellitus

Nefropatias não-crioglobulinêmicas

Aterosclerose da aorta



Observações anedóticas
Desordens psicopatológicas

Psoríase

Neuropatia periférica/central (não relacionada à crioglobulinas)

Poliartrite crônica

Artrite reumatóide

Poliarterite nodosa

Síndrome de Behçet

Polidermatosite

Fibromialgia

Urticária crônica

Prurido crônico

Pseudossarcoma de Kaposi

Vitiligo

Cardiomiopatias

Úlcera de córnea de Mooren

Disfunção Erétil

Eritema acral necrolítico



Fonte: Zignego et al, 2007





Crioglobulinemia mista

A crioglobulinemia mista (tipo II ou III) é a manifestação extra-hepática mais bem documentada da infecção pelo HCV, com prevalência acima de 50% em algumas séries . A crioglobulinemia é caracterizada pela presença imunoglobulinas que se precipitam de forma reversível em baixas temperaturas (< 37º C).

Apenas 10% a 30% dos pacientes portadores do HCV com crioglobulinemia apresentam sintomas e são comuns as queixas de artralgia e astenia nestes casos. Alguns pacientes apresentam uma vasculite sistêmica de pequenos vasos na qual as principais estruturas acometidas são a pele, articulações, rins e nervos periféricos. Os achados específicos de cada órgão serão descritos nas seções abaixo.

Para o diagnóstico é importante a presença de crioglobulinas circulantes. No entanto, pacientes portadores do HCV podem apresentar um quadro clínico sugestivo de síndrome da crioglobulinemia mista, porém inicialmente sem a presença das crioglobulinas. Isso pode acontecer, pois a quantidade de crioglobulinas responsáveis pelo dano vascular é variável ao longo do tempo. Desta forma, é recomendada a repetição da pesquisa das crioglobulinas a cada 6 a 12 meses nos pacientes com sintomas leves e a cada 1 a 2 meses nos indivíduos com manifestações moderadas ou graves que apresentaram crioglobulinas negativas nos exames iniciais. Além disso, pela termolabilidade das crioglobulinas, fatores relacionados à coleta de sangue ou processamento da amostra podem interferir nos resultados e protocolos rígidos são recomendados para a execução deste teste diagnóstico.

Manifestações hematológicas

Trombocitopenia:

A redução do número de plaquetas é um achado freqüente em portadores do HCV e pode estar associada à maior risco de sangramento durante procedimentos invasivos ou limitar a indicação do tratamento antiviral nestes indivíduos . Apesar de usualmente estar associada ao desenvolvimento de formas mais avançadas de doença hepática, a trombocitopenia parece ser multifatorial nos pacientes infectados pelo HCV. O hiperesplenismo, a formação de anticorpos “antiplaquetas” (trombocitopenia auto-imune) e a diminuição da síntese de trombopoetina são mecanismos envolvidos na trombocitopenia dos portadores do HCV .

Linfoma:

Vários estudos descreveram a associação entre a infecção pelo HCV e o desenvolvimento de linfoma não-Hodgkin (LNH) de células B. Uma metanálise de 48 estudos concluiu que a prevalência de hepatite C nos portadores de LNH de células B foi de 15%, o que é significativamente maior do que o observado na população geral (ao redor de 1,5%). Um estudo caso-controle realizado posteriormente encontrou risco aumentado de linfoma difuso de grandes células B, linfoma da zona marginal e linfoma linfoblástico. É sugerido que a crioglobulinemia secundária ao HCV pode progredir para o LNH e isso foi demonstrado em estudos que avaliaram testes genéticos moleculares em células de medula óssea de portadores do HCV com crioglobulinemia clinicamente ativa. É provável, entretanto, que a crioglobulinemia ocorra em conseqüência de uma estimulação crônica do sistema imune pelo HCV e esta, por sua vez, predisporia a desordens linfoproliferativas.

Gamopatias monoclonais:

Entre as manifestações extra-hepáticas do HCV, uma gamopatia monoclonal, mais frequentemente do tipo IgM/k, tem sido descrita. Na maioria dos casos em portadores do HCV, as gamopatias monoclonais são consideradas no grupo das gamopatias de significado indeterminado (MGUS), as quais devem ser monitoradas com a finalidade de excluir a pequena possibilidade de evolução para mieloma múltiplo.

Manifestações renais

Doenças glomerulares podem ocorrer em pacientes portadores crônicos do HCV. Os padrões mais comuns são a glomerulonefrite membranoproliferativa (usualmente associada à crioglobulinemia mista) e, menos frequentemente, glomerulonefrite membranosa. Uma elevada prevalência de marcadores do HCV em pacientes com glomerulonefrite membranoproliferativa associada à crioglobulinemia tem sido observada. A patogênese parece estar relacionada à deposição de imunocomplexos contendo anti-HCV e HCV-RNA nos glomérulos.

Manifestações auto-imunes

Um significativo número de manifestações auto-imunes foi associado à infecção pelo HCV. Entre elas se destacam a formação de auto-anticorpos, a doença tireoidiana e a sialadenite.

Formação de auto-anticorpos:

Auto-anticorpos são comuns em pacientes cronicamente infectados pelo HCV. Fator antinúcleo (FAN), fator reumatóide, anticorpos anticardiolipina, anticorpos anti-músculo liso ou anticorpos antitireoidianos são encontrados em 40 a 65% dos pacientes. Estes anticorpos estão normalmente presentes em baixos títulos e não parecem influenciar o curso da doença ou a resposta ao tratamento. No entanto, a presença destes autoanticorpos é de difícil interpretação e podem dificultar o diagnóstico de doenças reumatólogicas associadas.

Doenças da tireóide:

As doenças da tireóide são comuns em pacientes com infecção crônica pelo HCV, especialmente nas mulheres mais idosas. De uma forma geral, anticorpos antitireoidianos estão presentes em 5% a 17% dos portadores do HCV, e doença tireoidiana, especialmente hipotireoidismo, ocorre em 2% a 13% dos pacientes. Além disso, as doenças tireoidianas (especialmente o hipotireoidismo), bem como outros fenômenos imunomediados podem ocorrer após o tratamento da hepatite C com interferon.

Sialadenite:

Uma sialadenite linfocítica sugestiva de Síndrome de Sjögren foi descrita em portadores do HCV. Um estudo com 137 pacientes com Síndrome de Sjögren e hepatite C demonstrou que os achados clínicos e imunológicos nestes indivíduos são indistinguíveis daqueles observados nos pacientes sem infecção pelo HCV. De forma semelhante, uma prevalência elevada de hepatite C tem sido observada em portadores da Síndrome de Sjögren.

Manifestações Dermatológicas

Porfiria cutânea tarda:

A porfiria cutânea tarda (PCT) é uma doença de pele causada pela redução da atividade da uroporfirinogênio descarboxilase e é caracterizada por fotossensibilidade, fragilidade da pele, hematomas e vesículas ou bolhas que podem se tornar hemorrágicas. Existe uma forte associação entre a forma esporádica da PCT e a infecção pelo HCV, porém o mecanismo preciso pelo qual o HCV age como gatilho na PCT ainda é desconhecido. Todos os pacientes com PCT devem ser rastreados com a sorologia para a hepatite C.

Vasculite leucocitoclástica:

A vasculite leucocitoclástica ocorre em conjunto com a crioglobulinemia mista, e é evidenciada por púrpura palpável e petéquias que usualmente acometem as extremidades inferiores. Biópsias de pele demonstram vasculite cutânea com destruição dos vasos da derme associada a infiltrado neutrofílico dentro e ao redor da parede do vaso.

Líquen plano:

O líquen plano (LP) é caracterizado por lesões achatadas, violáceas, e pápulas pruriginosas com uma distribuição generalizada. Pode acometer as mucosas, cabelo e unhas. O líquen plano pode ocorrer em uma série de doenças hepáticas, principalmente avançadas. Apesar da sorologia para hepatite C ser reagente em 10% a 40% destes pacientes, uma relação causa-efeito clara ainda é incerta.

Conclusões

A hepatite C está associada a um grande número de manifestações extra-hepáticas e atualmente pode ser considerada uma doença sistêmica. O reconhecimento destas manifestações pode permitir um manejo mais adequado dos pacientes, bem como a prevenção de complicações relacionadas ao atraso no diagnóstico. Apesar de não haver uniformidade nas recomendações, a investigação da hepatite C deverá ser realizada, especialmente no caso de doenças em que a associação com a infecção pelo HCV está mais bem definida (categorias A e B da tabela 1).



Fonte:

Sociedade Brasileira de Hepatologia

Dr.Leonardo de Lucca Schiavon